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30/04/2020

O Djinn - Parte 4



Lá dentro o preto absoluto se tornou branco total. E ao invés de cair, ela apenas boiou no vazio. Colocou as mãos na frente dos olhos e não conseguiu vê-las. No mesmo instante surpreendeu-se ao perceber finíssimos fios azuis preenchendo o espaço com caminhos delicados e complexos. Eram suas veias e nervos que apareciam primeiro. Pareciam carregados de eletricidade. Ossos e músculos logo tomaram forma na energia azul, banhados naquele sangue anil.
Ela. No meio do vazio branco e adimensional, feita de luz azul.
De repente, sentiu que era puxada. Seu corpo começou a voar. Na distância viu um ponto escuro surgir e crescer, conforme se aproximava. Tudo o mais era branco.
O ponto também voava em sua direção, crescendo rapidamente. Era outra pessoa. Não, era... E uma tristeza esmagadora aperta-lhe o coração e a garganta. Começou a soluçar, suas lágrimas brilhantes deixavam um rastro de gotas para trás.
Não sabia porque chorava tanto. Porque doía tanto olhar a si mesma naquele vazio?
A Olívia de carne e osso perante ela não estava chorando. Aquela versão dela parecia ter acabado de chorar, e estava tremendo de raiva. Os dentes cerrados. Os olhos vermelhos e inchados.
Elas levantaram as mãos ao mesmo tempo, faltando poucos metros. Olívia queria saber qual era o problema, mas a outra apenas a acusava com um olhar duro de ódio. Então seus dedos finalmente se tocaram, desaparecendo então em uma explosão ofuscante. Seu braço foi tragado pelo brilho e envolvido num frio enregelante. A última coisa que ela viu antes de tudo desaparecer foram os olhos arregalados de sua sósia, num grito mudo.
Ela foi agarrada pelo pulso e tirada às pressas daquela água calma. De volta a um mundo gelado e inseguro. Respirou com força, mas não tinha se afogado. Alguém tentava fazê-la se sentar, mas encolhida no chão e chorando parecia melhor.
Eles chamavam por ela e a balançavam. Muito lentamente, Olívia tomou consciência do momento presente e balbuciou os nomes dos homens que a acudiam.
- Olívia, está sentindo algo diferente? – Perguntava Ezequiel pela décima vez.
- Não sei... O que aconteceu?
- Você caiu no rio, e as onças pararam o que estavam fazendo e foram pra lá. Os corpos dos... as coisas transparentes sumiram.
Ela olhou em volta. A chuva havia parado. A área ao lado do rio estava pacífica e bem iluminada pelo rio. Diferente do resto da floresta, que desaparecia no breu. Pelas margens, ao longe, dezenas de onças caminhavam para o mesmo desconhecido destino que eles.
Deixou que a ajudassem a ficar em pé. Sua mente repetia a experiência no vazio até a deixar tonta. Percebeu que Arnaldo e Ezequiel a encaravam num misto de apreensão e incerteza, esperando que dissesse algo.
Para desfazer o clima disse a primeira coisa que lhe ocorreu:
- Então, como me tiraram do rio?
Foi Arnaldo que respondeu:
- Não se lembra? Justo quando Zeca ia pular você esticou o braço para fora. Tem certeza que está bem?
- Vocês tocaram a água?
- Um pouco, mas não aconteceu nada – disse Ezequiel – Essa coisa parece que nem molha.
Ela fitava o rio de luz
- Vamos andando.
Começaram a seguir o curso d’água. As onças fantasmas já desapareciam, ocultas pelos troncos no caminho.
Logo a calmaria recém instalada se transformou em sofrimento antecipado; era a expectativa do que viria a seguir que dominava os pensamentos. A sensação era a de estar em uma jangada em um rio caudaloso, deslizando sobre correntezas suaves, diretamente para a queda abismal de uma cachoeira e a morte certa.
Cinco minutos depois Olívia notou novos ruídos no ambiente, que incrementaram o barulho da chuva com sons agudos e naturais – pareciam grilos e outros insetos –, dando-lhes a impressão de estarem andando em uma floresta quase normal.
As primeiras luzes azuis apareceram em seguida. Minúsculas. Eram incontáveis formigas, besouros e abelhas, pontilhando grama, ar e árvores como lâmpadas vivas.
Enquanto os homens se fascinavam com o efeito, um feixe de tênue luz índigo cortou o céu escuro e iluminou as nuvens próximas. Encontrava-se a uma distância considerável ainda, brotando sobre algum lugar misterioso à frente. Era sem dúvidas o destino do grupo. Ao vê-lo Ezequiel e Arnaldo ficaram sombrios de medo.
Subitamente, um lindo canto de pássaros somou-se à sinfonia fantasma. Do nada seus espectros apareceram pousando e voando pelos galhos em revoadas aleatórias. Os três caminhantes mal tiveram tempo de apreciar isso, quando dezenas de macacos sapecas saltaram da aparente inexistência e deram início a uma caótica e barulhenta brincadeira pelos galhos entrecruzados.
Diferente de antes, as centenas de vozes simultâneas se completavam em um frenético, porém um tanto harmonioso ritmo. Como uma orquestra composta pela fauna espiritual e regida pela energia azul. Tocando sua confusa melodia enquanto acompanhavam os peregrinos pela margem do rio.
A música alcançava o ápice e animais maiores surgiram por toda a parte. Antas, capivaras, cavalos e outros se juntaram a festa com seus sons característicos.
Era impossível não se animar também com tudo aquilo. Afinal, de uma forma ou de outra a floresta transbordava de luz, de alegria, e... de vida?
De repente um horrendo berro de dor esmagou a todos feito uma bigorna. Pesando sobre os corações do trio como ferro gelado. Mergulhando a floresta no desespero que sua voz carregava.
Por três ou quatro segundos fez-se um silêncio mórbido. O grupo parou, respirou – certamente ao mesmo tempo de quem gritava – e escutou.
O brado voltou a soar. O sofrimento parecia ter triplicado de intensidade. Como se o coitado experimentasse tamanha mutilação, que sua sanidade se desfazia a cada momento, arrancando sons que suas cordas vocais nunca haviam emitido.
- É o delegado, não é? – Perguntou Ezequiel.
- Conheço um porco guinchando quando ouço um – respondeu Arnaldo.
Olívia tinha pleno conhecimento de que, qualquer que fosse a sina de Gomes no momento, ele a sofria por ter se deixado enganar pelo demônio. Isso, porém, não a impedia de querer salvar o homem do tormento.
O que antes era uma festa para os bichos se tornara uma marcha silenciosa e automática. Os animais andavam soturnamente; suas cabeças baixas como se estivessem tristes.
O delegado Gomes engasgava entre um grito e outro, chorando copiosamente. Soltava palavras desconexas do que parecia uma oração. Seus pedidos sempre interrompidos por uma onda de agonia.
O grupo seguiu com crescente apreensão, com o feixe de luz se tornando mais forte no céu e os lamentos do delegado enfim minguando. O rio descia sempre – como é normal dos rios – sem alterações na correnteza e com mínimas alterações no percurso até então. No entanto, ao se depararem com uma subida bem mais íngreme à frente, não esperavam vê-lo subindo o terreno, inexorável. Inabalável.
Assim prosseguiram sobre o que aparentava ser uma imensa colina. No topo, o feixe de luz azul dividia o céu. Uma horda sem fim de animais luminosos subia por todos os lados. Todos rumo à misteriosa congregação.
O terreno aplainou, revelando uma ampla área, de poucas árvores e tomada por névoa e espíritos de animais. A colina se curvava tanto pela direita quanto pela esquerda, dando a estranha impressão de que por trás do feixe de luz e daquelas nuvens opacas o topo se fechava em um imenso círculo.
O rio seguia reto, desaparecendo, e logo nos primeiros passos começaram a sentir. Era a névoa. Fedia a coisa morta. Morta a dias. E só ficava mais forte.
- Puta merda! – disse Arnaldo.
O rio continuou fumaça à dentro, bifurcando-se então frente a uma enorme parede, ou barreira de raízes, com duas vezes a altura deles, seguindo em curva por ambos os lados, nas margens opostas dos rios – ou rio. Além das raízes a névoa era iluminada pelo feixe de luz que viam no caminho.
A fauna fantasma preencheu as margens onde eles se encontravam. No solo e nas árvores não havia mais espaço. A plateia era realmente imensa.
Após um momento de estupefata observação, Ezequiel tomou a dianteira e andou através dos animais, que não reagiram ao serem atravessados. Seguindo-o, Olivia descobriu serem tão frios que causavam ondas de arrepios nas costas.
Enfim chegaram onde o rio se dividia ao meio, colocando-se entre eles e aquela absurda formação de raízes, grossas demais para serem comuns, e que se revelaram esbranquiçadas por um tipo de musgo ou líquen. Acima e além dela, a névoa espessa era toda iluminada de dentro pela luz azul.
- Isso é... impossível! – Disse Arnaldo embasbacado. – Não existe nada assim aqui... ou em qualquer lugar... É uma ilusão.
Ezequiel coçou a cabeça.
- É... mas não importa... Desde que começamos a seguir essa porcaria de rio mágico nada fez sentido. – Ele terminou gesticulando para os fantasmas.
Olívia andou pela beirada, num estreito corredor entre os soturnos animais e o rio. Olhava de perto as raízes cinza-branco. Sob a luz do rio, pareciam centenas de vermes que morreram acasalando.
Um vento repentino trouxe uma onda de névoa diretamente de cima das raízes, que se derramou sobre o rio e quebrou sobre eles, trazendo muito sabedoria.
Agora sabiam o que havia lá.
Um ar denso de podridão. Rançoso, quase que grudento. Apesar de ser um cheiro familiar em seus modos de vida, com aquele toque grotescamente doce de carne putrefata, mas multiplicado tantas vezes que era impossível não sentir o gosto da coisa também. Olívia sentiu a umidade nauseante se acumular nas mucosas da garganta. Suas entranhas se contraíram. Vomitou tudo que tinha comido.
Deveriam ter saído correndo, mas ficaram todos ali, tossindo e tendo ânsias convulsivas. Ela sabia que não conseguiria voltar atrás tendo chegado àquele ponto. Não daria a si mesma essa frustação; de não descobrir o que havia a seguir.
Tinham recebido apenas um gosto do que estava por vir. Se pareceu em algum momento que estavam vivendo um pesadelo, se engaram. Aquele cheiro dizia que o pesadelo começava ali.
Logo do outro lado do rio.
Olívia só podia explicar sua vontade de subir lá como pura curiosidade. A do tipo estúpida que sempre leva tanta gente pra vala. Sentia que estava assistindo a si mesma, incapaz de decidir o próprio rumo.
- Se ainda quiserem continuar – disse Ezequiel, e apontou para algum lugar atrás dela – acho que dá pra pular naquela.
A raiz que ele apontava era espessa como um barril, e se projetava parcialmente sobre a água. Apesar de arriscado, pular ainda era melhor do que dar a volta sem saberem se haveria uma passagem decente.
- Quem vai primeiro? – perguntou Arnaldo.
- Bom, a ideia foi minha. – Respondeu Ezequiel, se adiantando. Ele deu o machado à Arnaldo, atravessou vários fantasmas para pegar distância e correu sem hesitar. Saltou longe, mais que o necessário, aterrissou arrancando musgo e se jogou pra frente, batendo com força e agarrando as raízes. Gritou; de certo pela mão quebrada.
- Estou bem!
- Ok. Olívia, segure pra mim por favor – disse Arnaldo estendendo a bolsa com a motosserra.
O velho colocou velocidade em pernas que há muito não tinham rapidez ou elasticidade. Seu pulo foi curto, quase na ponta da raiz, e os pés resvalaram no musgo solto, se separando. As velhas bolas foram de encontro à madeira e ele abraçou a raiz.
- Uuhh...
Olívia esperou Arnaldo levantar e se recuperar. Arremessou o machado, a espingarda do delegado e por fim a motosserra, que foi apanhada com mais dificuldade.
Finalmente era sua vez de pular. E ela o fez sem pestanejar. Pisou firme na raiz e ainda chegou com graça junto dos homens, quase sem ajuda.
- Sua perna já está boa? – Perguntou Ezequiel, confuso. – Você parou de mancar faz tempo e esse pulo foi fácil demais.
A pergunta a pegou de surpresa. Desde que caíra no rio esquecera completamente o ferimento da mordida.
- Minha perna...
De repente um ronco grave se fez ouvir, como um gigante respirando.
- VEM CHEGANDO AI...
A voz do demônio vibrava nos tímpanos. Soava ao mesmo tempo irritada e animada, e devastou a coragem do grupo.
Eles se encararam. Corações disparando. Ezequiel balançou a cabeça tomando a confirmação de todos. No que o fizeram, Arnaldo fechou a cara e retorceu os cantos da boca para baixo. Determinado.
- Estou indo, amor.
- Fiquem juntos – Disse Ezequiel – não importa o que aconteça.
Para sua surpresa, seu marido se aproximou e lhe deu um beijo breve, cheio de ternura, e ela quase chorou novamente.
Quando os homens começaram a subir as raízes, ela se ajoelhou rapidamente e verificou sua perna, constatando que o ferimento desaparecera por completo. O rio abaixo captou seu olhar; o intenso e cintilante mistério azul a perturbava ainda mais. Tudo sobre o demônio se mantinha à quilômetros da compreensão.
As protuberâncias ofereciam ótimos apoios e em poucos segundos ela se emparelhou aos demais, que observavam o lugar.
O que de baixo parecera uma barreira, na verdade se tratava de uma imensa plataforma de raízes entroncadas cobertas de musgo velho. O conjunto devia comportar terra, pois aqui e ali se viam pequenas árvores secas e retorcidas, com fiapos brancos de vegetação morta ondulando nos galhos. A neblina difundia a luz do feixe à partir do centro do lugar, envolvendo tudo como um gás azul pálido.
Uma palavra lhe vinha à mente: Lúgubre.
Mas o que manteve o grupo parado não era a sensação que o lugar transmitia, e sim a quantidade de mortos que atapetava o solo. Salvo as beiradas das raízes onde pisavam, centenas e milhares de cadáveres de animais em avançado estado de decomposição atulhavam-se até onde a vista alcançava.
- ESPERO QUE NÃO SE IMPRESSIONE FACILMENTE... ESTAMOS APENAS COMEÇANDO...
­- Ah, vai se foder – rosnou Arnaldo por entre os dentes, e tomou a dianteira, primeiro esmigalhando a ossada magra do que parecia ser um macaco, sob a bota, depois pisando em um crânio de anta que soltou o couro e quase o derrubou. O velho seguiu impassível.
Ezequiel deu a deixa e Olívia pisou à frente, triturando como cascas de ovo, insetos mortos, quebrando costelas e colunas, desfazendo carne podre a cada passo.
Apesar de estarem no topo de uma colina, não havia verdadeira brisa ou vento que suavizasse a repugnância do ar, e cada respiração era um ato de penitência. Neblina e podridão eram um e o mesmo.
O grupo foi vencendo os metros rumo ao centro da plataforma, de onde a luz provinha. Os únicos sons que ouviam era o chafurdar de suas botas. Frequentemente as barrigas dos animais estouravam, ejetando tripas e gazes em suas pernas.
Enfim uma forma gigantesca começou a transparecer. Era ninguém menos que a dona de todas aquelas raízes. A árvore tinha facilmente oitenta metros de altura e parecia morta. Seus galhos cobertos de fiapos brancos cobriam o céu. A luz concentrada que viram à grande distância era emitida da base da árvore, banhando tudo acima com intenso brilho azul.
O delegado Gomes estava junto ao tronco de braços abertos, como se crucificado, mas sem pregos que o prendessem à madeira. Sangrava por todo o corpo e suas roupas pendiam em retalhos imundos. Por estar com a cabeça abaixada ainda puderam notar dois círculos vermelhos logo acima da testa, escalpelados.
Continuaram se aproximando, agora mais devagar. Dezenas de onças mortas rodeavam Gomes e a árvore.
- CURIOSO, NÃO É?
Dessa vez a voz chegou de uma direção específica. O grupo estacou e olhou para o alto, para uma perna azul escuro que balançava a trinta metros de altura, em um galho junto ao tronco. Não conseguiam ver muito mais que isso. Apenas sombras. Talvez sua mão estivesse segurando um cachimbo.
- SIGA A ESPIRAL DESCENDENTE... E GARANTO QUE NÃO HAVERÁ PERGUNTA SEM RESPOSTA... – Ele tragou, pois realmente estava fumando, e soltou uma nuvem de fumaça – TENHO UMA PERGUNTA TAMBÉM... – A voz silenciou de repente. Os segundos se prolongaram como se o mundo estivesse parando. E voltou sem aviso, explodindo sobre eles a sentença irrevogável:
- MAS TERÁ QUE PROVAR SER DIGNO DESTE MISTÉRIO!
Ninguém conseguiu falar ou se mover. Um relâmpago desenhou a silhueta chifruda e inumana, agora em pé sobre o galho, e então a criatura não estava mais lá, como se nunca estivesse.
- ALI! – Gritou Arnaldo, apontando.
De trás da árvore surgiu o animal mais belo que Olívia já pusera os olhos: Uma enorme onça albina. Os músculos ondulando sob o pelo curto. Parecia sagrada em meio àquela imundice. Era o primeiro animal vivo em muito tempo.
Ela andou placidamente e sentou-se de frente para o delegado. Lançava uma sombra sobre o feixe.
No instante seguinte, Gomes levantou o rosto, encarando a fera. Mas seus olhos tinham como que pequenas chamas azuis, e sua expressão era a da morte. O homem escancarou a boca em um movimento repentino, gritando e vomitando ao mesmo tempo. Então luz azul brotou do fundo de sua garganta e foi expelida em uma cascata pastosa, esticando-se até o chão e formando um monte brilhante.
- Mas que porra está acontecendo? – perguntou Arnaldo.
Para a surpresa de todos, quando o vômito cessou, a massa informe no chão começou a se tornar transparente, e choramingar. O fantasma de Gomes apareceu nu, encolhido em posição fetal à frente do próprio corpo. Mesmo em espírito o delegado era gordo e flácido.
A onça por sua vez começou um grande e preguiçoso bocejo, e quando a boca não poderia se abrir mais, a cabeça pendeu mole e o corpo desabou para o lado, permanecendo no lugar apenas sua versão translúcida. O espírito do felino se levantou nas ancas e rosnou.
- O quê é isso? – gemeu Gomes, percebendo o animal – Por favor... Já chega... Eu não fiz nada de errado... – Abraçando a si mesmo e tremendo, o homem se levantou. Tinha o rosto retorcido de pavor.
A onça rosnou mais alto.
- NÃO! POR FAVOR! – O espírito se espantou ao ver o grupo de Olívia, algo que não sabiam ser possível. – SOCORRO! EZEQUIEL! ME AJUDEM POR FAVOR!!!
A fera se aproximou com membros flexionados e presas à mostra. Quando saltou, o homem só teve tempo de cair para trás, tendo a infelicidade de abrir as pernas por um momento. O ataque foi ligeiro e brutal, arrancando todo o púbis e um pouco das coxas junto com seus genitais. O sangue que jorrou era luz líquida e viscosa.
Gomes soltou um grito esganiçado, cobriu o buraco entre as pernas com as mãos e rolou seu espírito agonizante sobre os cadáveres do chão.
O felino engoliu o petisco em um instante e atacou novamente, cravando suas garras dianteiras para prendê-lo no chão. Barriga para baixo. Entre berros de agonia e socos inúteis, a onça dilacerava sem pressa sua nádega direita, mordendo e puxando cada pedaço até arrebentar.
Não parecia um ataque de onça. Olívia sempre acreditou que as onças matavam suas presas antes de comê-las, mas aquela fera parecia estar se divertindo. Como se para provar esse pensamento, a fera testou suas afiadas presas na bacia do homem ­­­­­- a quantidade de dor que aquilo causava. Os gritos de Gomes quase abafaram os sons de seus ossos rangendo e cedendo entre as poderosas mandíbulas.
Ao se cansar daquela brincadeira, a onça abocanhou o braço dele e o arrastou com facilidade até uma pequena área onde as raízes não estavam cobertas de corpos. Gomes não tinha mais forças para lutar. Viram o felino se jogar no chão com o braço ainda na boca - do mesmo jeito que os gatos brincam agarrando coisas. E então, como se gato fosse, chutou o homem com as duas patas traseiras, abrindo sulcos profundos na cabeça e costelas do espírito
O fato de serem dois seres radiantes e translúcidos em nada facilitava presenciar aquilo.
O braço cedeu no ombro. A pele rasgou e esticou feito elástico, restando alguns nervos e tendões conectando as partes. O sangue espirrava com força, cobrindo ambos.
Nesse momento uma forte e inexplicável vibração subiu das raízes para as pernas do grupo. As luzes ficaram mais intensas por um momento, em especial o brilho do sangue, e a vibração parou.
A onça terminou de arrancar o braço com uma torção e o largou. Pulou com ferocidade, mais uma vez sobre o delegado, sobre sua cabeça. Abocanhou-o nas têmporas, como que para quebrar o crânio. Fazendo-o gritar mesmo sem lhe restar forças. O tormento do homem não tinha fim.
O chão tremeu novamente, dessa vez mais forte e rápido. Percorreu as raízes de fora para dentro, para a árvore, intensificando o brilho azulado que dominava o ambiente. Assim que a luz diminuiu, outra vibração se seguiu. Pelo jeito não iria parar até se acabar o que quer que estivesse acontecendo ali.
De toda a cena de tortura sofrida pelo espírito de Gomes, Olívia ficaria especialmente perturbada pelo o que ocorreu a seguir: O delegado e a onça começaram a derreter e grudar um ao outro, suas substâncias espectrais se confundindo e se apagando na intensidade da luz. Gomes gemia de olhos arregalados, parecendo totalmente consciente e horrorizado com a liquefação e fundição de seu corpo. Foram afundando lentamente em uma grande poça brilhante, e nos últimos segundos de liquefação, Gomes abriu uma boca totalmente desfigurada, gorgolejando um longo e final suspiro.
Olívia berrou, furiosa e ensandecida...
- AAAAAAARGH! DEMÔNIO!!
... e sua risada maligna e divertida respondeu de dentro da névoa.
- DESGRAÇADO, MALDITO!!
Nesse momento o ápice da vibração estourou com um raio ofuscante que apagou todo o tronco da árvore de vista. Quando enxergaram novamente não havia sinais dos espíritos ou da poça que eles viraram, somente a base da árvore ainda emitia uma luz, ainda que mais fraca. Isso, e o corpo real de Gomes também brilhava, os cortes por todo o corpo acesos com energia azul e soltando fumaça. Se tratavam afinal, de símbolos.
A força que o mantinha preso desapareceu e ele caiu pra frente, de quatro. Em sua testa duas espirais reluziam, e delas brotaram enormes pontas de ossos a lhe arrombar a cabeça. Logo haviam enormes e pontiagudos chifres apontados para eles.
O monstro respirava pesadamente, parecendo maior e mais branco a cada inalada. Lhe cresciam os pelos albinos. Os símbolos ferviam a carne dos braços como brasas azuis.
- Merda! – praguejou Arnaldo, já tirando a motosserra do ombro e se livrando da bolsa – Qual o plano? Ezequiel?
- Olívia fica logo atrás de nós e estoura o filho da puta antes que ele nos mate. – Ele olhou para ela: - Tem que pegá-lo com esses dois tiros, amor. Cabeça ou coração. Você sabe.
Com o seu coração a mil ela levantou a espingarda. Naquele momento ela só sabia que precisava derrubar aquela coisa o mais rápido possível.
- NÃO!! – Gritaram eles.
Uma explosão ensurdecedora e dolorosa a jogou para trás. Caiu sentada, afundando nos corpos podres. A coisa que costumava ser Gomes deu um rugido demoníaco. Nem parecia ferida. E a encarou com olhos ardendo como brasas azuis.
- Tem que chegar perto! – Gritou Ezequiel, sem ser ouvido.
Ela lutou pra se levantar, pronta para disparar novamente. Seus ouvidos zumbiam. Mirou melhor dessa vez, mas o cadáver da onça albina estava entre eles, erguida pelo pescoço com uma mão, como escudo. O homem-fera atrás já se levantava sobre dois metros e meio de altura.
Antes que pudessem reagir, o monstro girou a onça sobre os chifres e Olívia só viu um enorme borrão branco voando em sua direção. O cadáver a atingiu em cheio, fazendo a disparar para o céu e lhe tirando o ar dos pulmões. O peso da onça a jogou para trás e a prendeu na decomposição Tinha uma dor lancinante na mão direita.
Passaram poucos segundos, Ezequiel, Arnaldo e sua motosserra rugiram, assim como o monstro, e começou o confronto. Enquanto isso Olívia lutava por ar, tossindo com os gases podres. Quando seus pulmões se encheram daquilo e um pouco de oxigênio, trincou os dentes e empurrou a onça. Seu indicador continuava no gatilho, retorcido e esmagado quando a arma dera o coice. Ela empurrou, gemeu, chorou, e finalmente se livrou do peso.
A fera soava ainda mais enfurecida, enfim ferida. Então alguém gritou (merda!) e recebeu um golpe violento.
Olívia forçou-se levantar o mais rápido possível. Primeiro viu o monstro. Os símbolos desenhavam traços no ar conforme ele atacava Arnaldo. Este por sua vez fugia, se protegendo com a motosserra. Mais à direita Ezequiel também se ergueu do chão. O braço da mão previamente quebrada pendia torto e com a pele talhada. Seu marido soltou um grito de dor e fúria e avançou contra o homem-onça.
Ela sabia o quanto aquela luta dependia dela. O quanto eles dependiam dela. Mas não ajudaria em nada com uma espingarda descarregada. Estava atrasada e longe demais. Estúpida. E ao carregar a arma se atrapalhava entre segurar, abrir os canos e pegar os cartuchos. Burra.
Arnaldo cambaleava para trás, cortando o ar em zigue-zague entre ele e a fera, que gotejava de cortes nos braços e de alguns dedos decepados. Ele levantou a motosserra num ataque vertical e no meio da ação recebeu um veloz chute no peito que mais pareceu um coice. O velho voou para trás, deixando a motosserra cair.
A criatura não perdeu tempo, e pulou sobre ele, errando por pouco. Suas patas esmagaram os cadáveres, que esguicharam matéria pútrida para os lados e sobre Arnaldo. No próximo instante iria trucida-lo.
Ezequiel dava o melhor de si para impedir a fera. Naquele momento não conhecia medo ou dor. Corria com o braço quebrado se contorcendo no ar. Iria colocar toda a força no próximo golpe.
Desesperada, Olívia fechou a arma carregada e disparou no monstro. E apesar da distância considerável, os balaços o acertaram pelo ombro e crânio, arrancando uma orelha e soltando faíscas no chifre. A fera urrou e se encolheu, cobrindo com as mãos os buracos que o pintavam de vermelho.
Seu marido chegou a toda, desferindo seu melhor golpe. Mas, apesar de ferida, a fera se virou com a aproximação, e a folha do machado passou direto, pesada como uma guilhotina, lhe decepando a metade da pata.
Irado, o monstro atacou com suas garras bestiais, com uma porrada no rosto de Ezequiel que o fez girar no ar – abaixo dele, a repugnante lama que os corpos pisoteados viravam – e cair de cara. Inerte.
- NÃO!
Olívia já corria quando engatilhou e disparou novamente, perfurando o maldito pelo braço e barriga. O monstro fugiu depressa, tropeçando e escorregando no coto do pé.
- EZEQUIEL!
Arnaldo tossiu algo que poderia ser seu sangue, ou os interiores liquefeitos de algum animal. Custava a respirar.
Enquanto vencia os últimos metros até Ezequiel, não queria pensar no pior, mas quando viu seu límpido e escuro sangue se misturando na sujeira, arquejou.
- Não... Não... Ah Deus, Não...
Olívia deu um suspiro sufocado. Os olhos ficaram quentes e molhados. E quando abriu a boca para chorar, de repente várias bolhas brotaram do sangue. Ela o virou imediatamente, tirando seu rosto da imundice que ameaçava afoga-lo. Ezequiel tossiu com força, expelindo mais sangue. Seu olho esquerdo fora arrancado junto com uma parte do osso. Sua face retalhada da orelha ao canto da boca; expunha dentes e gengivas onde havia uma bochecha barbuda. Para piorar, seu maxilar estava claramente fora do lugar, permitindo-o apenas gemer. Seu único olho bom rolava loucamente nas órbitas, desvairado em dor.
Então as lágrimas arrebentaram. Sentia culpa por toda aquela desgraça. Afinal onde estava com a cabeça ao decidir enfrentar o demônio? Seu marido estava à beira da morte...
- Olívia... – disse o velho, e tossindo quase a cada palavra. – Se ele morreu deixe ele aí! Temos que nos preparar, agora!
Com muito esforço desviou o olhar para Arnaldo. Em pé, segurando o peito, ele apontava para o outro lado.
O monstro se prostrava junto à arvore; mãos e testa encostados no tronco. Os símbolos chiavam alto, queimando e soltando vapor. No alto da cabeça da fera, entre os chifres, surgia uma fogueira azul.
No colo de Olívia, Ezequiel começou a respirar depressa, e ela pensou que ele estava morrendo. Mas seu olho a encarava com intensidade e força. Não estava se despedindo. Ele a deixou sem ação, quando começou a se levantar e buscar o machado. Sua recuperação era mais que impressionante, era milagrosa.
- Ele vai pagar por isso – disse Arnaldo, fazendo cara feia para a condição do amigo.
Sua determinação parecia fluir para ela. Por um momento perdera as forças e esperança para continuar, mas agora não havia como desistir. Não quando seu marido continuava de pé, mesmo todo fodido, e o único ferimento dela era um dedo quebrado.
- Droga! – Arnaldo lutava com a motosserra para liga-la, sem sucesso.
- Vamos sair de perto dele! Pensar em alguma coisa. – Disse ela, num surto de liderança atípico.
Não era mais tão difícil galgar os animais podres; a adrenalina fazia bem seu serviço. Eles acabaram ganhando cinquenta metros de distância em questão de segundos. Até mesmo Ezequiel os alcançava; mesmo desequilibrado, corria com o machado em riste. Um maluco sanguinário.
- É simples, Olívia – começou o velho, arfando a cada puxada na corda de ignição – Fique perto... e fora do caminho... enquanto o deixamos ocupado você...
- Cabeça e coração. É...
De repente a besta solta um uivo, longo e poderoso. O chão começa a tremer e chiar, como se fervesse. Não eram apenas as raízes dessa vez; as milhares de carcaças agitavam-se por si só, emitindo uma cacofonia de cliques agudos que rapidamente preencheu o ar.
Estavam num mar de cadáveres pululantes, e a sensação era de que uma onda iria arrebentar sobre eles.
Com um segundo uivo do felino, os corpos arrebentaram de dentro pra fora, despejando um infinito número de larvas do tamanho de polegares, que mastigavam tudo ao alcance de suas pinças pretas claudicantes.
Uma onda de vermes cobriu as pernas do grupo, mordendo e subindo nas roupas, não importava o quanto sambassem. Ao redor deles apenas fileiras de costelas começavam a despontar do mar de insetos.
Mesmo na confusão escutaram claramente quando o monstro começou a andar. Ossos esmigalhados marcavam seus passos.
Só então Olivia se deu conta de que a espingarda estava novamente descarregada. Abriu o cano - seu indicador era uma linguiça roxa, dolorosa - e retirou as cápsulas vazias.
Um rugido apavorante transmitiu a destruição que a fera pretendia lançar sobre eles. Apressada, ela encheu a mão de cartuchos novos, se atrapalhou no ato de encaixá-los e derrubou vários sem conseguir colocar ao menos um. O monstro começou sua investida num galope furioso, pulverizando o caminho. Já podiam ver um clarão azul rasgando a névoa.
Tinha duas munições restantes na mão, mas não tinha tempo para carrega-las, e nenhuma opção de esconderijo em campo aberto. Então se viu mergulhando, sem pensar duas vezes, mergulhou no ventre aberto à sua frente, maior que os demais – um cavalo -, e ainda com alguma pele sobre o dorso. Aninhou-se no tórax repleto de vermes, focada apenas em colocar as duas balas na arma. Do lado de fora Arnaldo amaldiçoava a motosserra e Ezequiel mal se movia, espumando sangue.
Vermes e ossos choveram sobre eles; o pesadelo chegava em carga.
A coisa rugiu mais uma vez. Olívia colocava o segundo cartucho na espingarda.
Seu marido ergueu o machado, preparando um golpe seguro na vertical. Estava iluminado, e seu olho refletia o fogo azul que engolfava os chifres.
Olívia não saberia dizer o quanto uma situação extrema era capaz de alterar a percepção de alguém, mas o tempo realmente pareceu transcorrer mais devagar; a realidade tomando uma riqueza de detalhes nunca vista.
O céu está cheio de ossos e vermes, e uma bola de fogo com dois espigões passa por cima dela, na direção de Ezequiel. Viu o monstro, todo músculos contraídos, concentrados em perfurar seu marido; viu sua pata amputada pisar nela, prendendo seu braço; e por fim viu seu homem, incapaz de prever o ataque cruzado no último instante, errando totalmente e sendo transpassado.
Seu grito de dor se afogou em sangue.
Ezequiel foi erguido pelo chifre, à mercê da gravidade e do fogo na cabeça da besta. Vomitava um rio de sangue, mas para um último golpe encontrou alguma força, descendo o machado a morder as costas da fera, onde a arma ficou. Suas roupas começavam a pegar fogo, o fogo normal.
Olívia via que a cabeça e coração do inimigo estavam – além de fora de alcance – fora de ângulo; não os acertaria nem se tivesse as duas mãos para mirar.
Foi a pior visão de sua vida: O sangue caindo na boca do demônio, a lamber os beiços, enquanto a pele de Ezequiel crepitava, fedendo a assado.
Deu tudo errado! Pensou. Merda!
A ponta peluda de um rabo branco toca seu rosto – um apêndice totalmente ignorado até então - e seus olhos sobem até encontrarem um ponto quase escondido entre a base do rabo e os testículos avantajados, e totalmente ao alcance de sua arma.
O sangue de Olívia ferveu. Em seu braço esquerdo se concentrou toda a sua força e pontaria; toda a sua vontade de viver e de matar; em uma estocada audaciosa que ela não podia e não iria errar.
Ela forçou o apertado orifício a engolir metade da espingarda e disparou.
A explosão ribombou dentro dele. O susto foi tamanho, que uma fortíssima contração deteve o recuo da arma, prendendo a empunhadura móvel. Nesse ínterim a fera soltou um muito doloroso arroto. Entre recuar e prender, a empunhadura se moveu, gloriosamente engatilhando o mecanismo que iria foder aquela besta de uma vez.
BUM!
Com isso, os fortes músculos anais finalmente cederam, e a arma saiu feito uma rolha tirada de um barril; liberando uma torrente vermelha e pastosa no meio de sua cara.
Cega e engasgada, Olívia ouviu os urros sufocados da fera e soube que seus pulmões estavam tão estourados quanto suas tripas.
Mas o monstro continuava matando Ezequiel, só por continuar em pé.
Tão bom quanto engatilhar um segundo tiro dentro da coisa, foi ouvir as lâminas motorizadas de Arnaldo ganharem vida de repente; acelerando e se aproximando.
A criatura enfim deu um passo para o lado, liberando seu braço direito - que já não sentia – e desviando de sobre ela a torrente de tripas liquefeitas. No instante seguinte monstro e velho se chocaram.
Ela limpou os olhos bem a tempo de ver Arnaldo serrando o bíceps do homem-onça, enquanto este fechava as garras da outra mão em seu tronco, partindo uma costela atrás da outra como gravetos. O enorme braço peludo despencou no chão como uma tora de madeira podre. Arnaldo avançava mesmo com as perfurações no tórax, forçando então os dentes da máquina a mastigar a lateral do monstro.
Olívia começou a sair da carcaça e do meio dos vermes. A motosserra abria um talho fundo, se aproximando da coluna. A fera caiu sobre um joelho, mas evitou o pior puxando o velho e arremessando-o longe.
Ezequiel balançou de um lado para o outro, estava preto de queimado.
Ela não precisou pensar para agir; simplesmente agarrou o machado - ainda enterrado no monstro -, ergueu-o bem alto com as duas mãos, e desceu-o o mais forte que conseguiu. Acertou em cheio sua coluna robusta. A vértebra pareceu espatifar sob a lâmina. As pernas do demônio se desligaram do corpo, derrubando-o de bruços.
E as costas do maldito subiam e desciam.
Incapaz de aceitar que ele respirasse, Olívia arrancou o machado da coluna e partiu para o pescoço, golpeando e berrando, sem parar.
Silêncio.
Ficou estática. A boca entreaberta. O coração doendo.
Arnaldo tossia. Era o único som sob a Árvore da Morte.
O monstro jazia apagado. Sua cabeça separada não queimava mais. Ezequiel continuava preso a ela, inerte. Parecia bem morto. Tudo estava. Nem mesmo os vermes embaixo dele se moviam.
Seu coração parecia morto.
Chorou por dentro pois não tinha mais lágrimas.
Mas Ezequiel, seu eterno amor, mais uma vez lutou pela vida, sorvendo baixinho um pouco de ar.
Algo estalou dentro dela. Um trovão. Um raio azul de esperança. Tinha que agir depressa.
- Arnaldo! Consegue andar?
- Não... – gemeu. – Acho que... me fodi mesmo...
- Nada disso! Nada de desistir! Levanta! Agora!
Enquanto convencia o velho, Olívia puxou a cabeça do demônio e livrou Ezequiel do chifre. Shlop, foi o som que o buraco fez. Então pegou os pulsos do marido e começou a arrastar.
Arnaldo se levantou. Sua respiração chiava, esguichando sangue entre os dedos que apertavam o peito.
- Me ajude – ofegou ela.
Poupando-se do esforço de falar, o velho apertou o peito com mais força e pegou um dos pulsos de Ezequiel com a outra mão.
Foi difícil.
Ela chutava o que conseguia para fora do caminho, mas os ossos e vermes mortos invariavelmente se acumulavam sobre os ombros e cabeça de Ezequiel. Como se ele fosse uma vassoura.
Olívia pensava apenas em chegar lá, mas na metade do caminho Arnaldo já ameaçava tombar para frente, e o fez, faltando apenas um quarto da distância.
Não posso parar agora.
Eram no máximo quinze metros até a beirada. Olívia rugiu. Reuniu forças que ela mesma desconhecia, vencendo cada passo, cada metro. E por fim empurrou seu marido dentro do rio.
Voltou correndo até Arnaldo se sentindo mais leve. Livre de sua maior preocupação; tinha feito tudo o que podia por Ezequiel.
- Mais um pouco... – dizia ela, sustentando Arnaldo pelo braço e cintura. – Falta pouco... – O velho estava pálido. Tinha a expressão de um cadáver.
A luz azul no limite das raízes era a linha de chegada da salvação. O rio na verdade era o caminho da perdição, mas isso em nada importava.
Olívia empurrou o amigo moribundo sem cerimônia e pulou atrás, afundando por completo nas águas mágicas.
Morno.
Não. Não havia sensação térmica. Havia paz. Muita. Disso se lembrava. Mas também havia esquecimento.
Ela se debateu e ganhou a superfície. Encheu os pulmões. Tinha que se manter aflita; se manter preocupada. Ou cederia à vontade de se afogar naquela água. Seu plano estava funcionando? Estavam sendo curados, como sua perna fora?
Arnaldo boiava emborcado. Apenas com as costas de fora. Ezequiel tinha pouco mais que o rosto acima da água. Braços e pernas abertos. Metros de seus intestinos serpenteavam livremente ao redor dele, mas não havia sangue.
Ela não sentia corrente, mas a rio os carregava. Olívia sentia o sono tomando conta.
Os animais fantasmas os observavam da margem. Pareciam mesmo cabisbaixos, apiedados com as pessoas na água. Não deu atenção; seus olhos já perdiam o foco.
Era muito fácil boiar, e pouco tempo depois seus olhos se fecharam. Estava quase dormindo. Quase. Ela imaginava peixes de luz azul nadando numa imensidão branca.
Um ruído começou a se insinuar em sua mente. O som despertava nela a visão do buraco negro, e antes de reabrir os olhos soube o que iria acontecer.
Abria-se uma garganta sob a plataforma de raízes. A água afluindo veloz pelos dois lados, de forma que todo o rio era no fim engolido por ela. Os lábios cobertos de musgo seco; e dentes de líquenes brancos balançando na entrada.
O pânico tomou seus sentidos de assalto, expulsando o sono. O rio despencava ruidosamente, como se o buraco gritasse. Era a espiral de novo. Puxando-a para dentro. A espiral descendente; e dessa vez todos iriam para baixo com ela. Para as profundezas. Não havia nada que pudesse impedir isso.
Ela assistiu impotente enquanto ganhavam velocidade. A bocarra parecendo se abrir para eles. Em seu interior, as raízes iluminadas e entrelaçadas. Ezequiel rodopiava nas águas agitadas, e no último instante, foi sugado de uma vez para dentro, desaparecendo. Olívia logo seria engolida também.
À merda aqueles peixes. Pensou. Não vou dormir.
Assim que entrou na boca, despencou, carregada por um túnel estreito e quase na vertical. As raízes formando o teto rapidamente se afunilaram e desapareceram em solo pedregoso, e este foi se tornando mais rochoso até o grupo ficar totalmente envolto por pedra.
Desceram, ou caíram, por talvez um minuto. Então começou a ouvir a água se chocando lá embaixo. Parecia que iriam bater em cheio na pedra, ou serem triturados por ela. Olívia submergiu de uma vez, sentiu a dormência instantânea, sua desistência involuntária, mas para sua total surpresa seu corpo foi lançado bruscamente para fora. Abriu os olhos em plena queda. Estavam caindo dentro de uma galeria subterrânea. Uma caverna imensurável. Chegou a notar alguma luz arroxeada ao longe, mas um extenso lago azul brilhante clamava seu corpo dezenas de metros abaixo.
Ela esperou o impacto.
Só que não aconteceu. Sequer houve dormência. Simplesmente estava de novo.
O sonho branco.

26/03/2020

O Djinn - Parte 3




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- Todos os cães estão nos encarando... – disse Olívia. Ela vinha percebendo isso desde que eles saíram da loja de Arnaldo. Era o segundo grupo de vira-latas a parar completamente o que estava fazendo e acompanhar a passagem da picape com a cabeça.
- Quê? Cães? – Perguntou Arnaldo, abrindo os olhos e encerrando a prece que fazia. Suas mãos cruzadas sobre o cano do rifle entre suas pernas.
- Cavalos – disse Ezequiel apontando mais a frente para um terreno cercado onde alguns equinos eram vendidos. O vendedor tentava sem sucesso impedir um cavalo jovem e excitado de montar em uma de suas éguas. Estavam quase na frente da cerca quando o garanhão se equilibrou sobre a fêmea e a penetrou. Então o movimento parou de uma vez. Suas longas cabeças se viraram juntas para a picape e passaram a segui-la. A posição do coito congelada.
Os três não puderam evitar olhar de volta. No fundo daqueles globos pretos e acusadores. Como se não fossem eles os safados.
Cinco segundos depois Arnaldo procurava mais animais por onde passavam. Estava pálido.
- EI, EI, EI! Isso é coisa dele não é? Aconteceu com o cachorro de vocês. E esses bichos... como...
Olívia abriu a boca para falar, mas Ezequiel disse exatamente o que ela pensava.
- Ele sabe. Vamos ter problemas com os animais.
Ele sabe. E sem querer Olívia já revivia mais uma vez a despedida em frente à casa de Maria. E não parece ter medo de nós. Talvez até nos ache engraçados.
- Ele sabe de que? – Perguntou o velho.
Ezequiel balançou a cabeça.
- O que ele não sabe...
- Mas que merda! Fale direito!
- Já chega! – Gritou ela. – Devíamos estar discutindo como vamos encontra-lo!
O carro saiu da cidade e as casas deram lugar às plantações. Soja e cana-de-açúcar apareciam regularmente, mas era o café o forte da região. As fileiras de arbustos cafeeiros se estendiam por uns dois quilômetros, até onde a floresta começava. Não importava em que direção olhava, ela sempre estava lá dominando o horizonte. O reino da criatura.
O demônio podia estar em qualquer lugar e em lugar nenhum.
- Eu tive uma ideia – disse Ezequiel, quebrando um longo silêncio que fedia a cérebro queimado. – Não é excelente, mas é um começo.
- O que vamos fazer?
- Da floresta inteira, ele deve ter escolhido o local de mais difícil acesso. Minha ideia é subir e ver as coisas de cima. Só então decidir o próximo passo.
Arnaldo franziu o cenho. Olívia pôde ouvi-lo respirar pesado.
- Você não está pensando em subir a serra, está? Quer observar a droga da paisagem enquanto um demônio faz o que quiser com a minha mulher?! Não temos escolha, temos que entrar logo nessa mata e enfrentar o que quer que seja!
Ezequiel lhe deu um sorriso torto em resposta e desacelerou a picape. Parando em seguida.
- Quer tanto morrer, velho? Acha que não vamos conseguir?
- Por que paramos? – Perguntou Olívia.
Ele piscou para ela, abriu a porta e se afastou alguns passos. Arnaldo desceu do veículo soltando um palavrão e outro e o seguiu. Logo estavam amaldiçoando um ao outro e urinando na beira da estrada.
Olívia relaxou. Por um momento pensara que os dois iriam se desentender. Tinha se esquecido do quanto àqueles homens discutiam.
Ela olhou para o céu e se perguntou quantas horas eles tinham até o anoitecer.
Ezequiel e Arnaldo voltavam para o carro quando o rebanho apareceu, bloqueando a estrada quase um quilômetro à frente. Havia algo entre vinte e trinta bovinos, e nenhum possuía intenções assassinas. Com certeza estavam apenas sendo transferidos de uma fazenda à outra.
A quem ela estava enganando?
- Ezequiel! – Gritou ela, mas ele já estava subindo na caçamba e gritando ordens.
- Dirija! Vamos ter que passar no meio dessas vacas! Cadê teu rifle, velho?!
Arnaldo rebolou ao redor do carro o mais rápido que pôde e pegou sua arma pela janela. Usou o braço de Ezequiel para subir na traseira.
Olívia fez a picape andar. As armas foram apoiadas no teto.
Ressoou o primeiro disparo. Uma vaca tremeu e sentou nas ancas. Ela ouviu o ferrolho sendo puxado e o cartucho vazio caiu sobre o capô. O rebanho continuou andando normalmente.
- Quando chegar perto pare o carro! Precisamos de tempo para atirar nelas!
Ela imaginou que outro carro poderia chegar logo, e então as pessoas tentariam entender o que estava acontecendo. Talvez realmente entendessem e os ajudassem...
Outro disparo. Dessa vez um animal foi ao chão, no que foi pisoteado e deixado para trás.
Olívia olhou pelo retrovisor com uma ponta de esperança...
... e percebeu que não tinham tempo de parar o carro.
- OS CAVALOS ESTÃO VINDO! – Gritou.
Arnaldo imediatamente xingou suas mães equinas.
- Ainda estão longe – gritou Ezequiel. – Se concentre nas vacas!
A parede viva foi crescendo na direção deles e a picape avançou atirando. Faltavam quinhentos metros, e Olívia sentia cada vez mais dificuldade em regular o pé do acelerador. Se pisasse fundo destruiria o carro em toneladas de carne e arremessaria os homens longe. Se não o fizesse, logo estariam cercados.
Faltando trezentos metros, começou a reduzir bastante a velocidade. Após nove ou dez vacas abatidas o bloqueio parecia apenas um pouco menor. Percebeu com desespero que sua maior preocupação se tornaria realidade muito breve; era inevitável que os cavalos os alcançassem.
Pelo retrovisor viu dois deles chegando depressa e um terceiro bem mais atrás, sendo atrasado por uma carroça que puxava. Os cascos eram audíveis, estalando no asfalto. Ezequiel e Arnaldo se ocupavam em munir os rifles.
- SAIAM DA FRENTE VACAS MALDITAS!
Arnaldo recomeçou a disparar quando estavam a duzentos metros dos bovinos. Ezequiel deixou seu rifle carregado para ele e pegou o machado. Ele o balançava quando o primeiro cavalo os alcançou.
Pelo retrovisor Olívia acompanhou cada segundo de tensão.
O garanhão surgiu com seu trote frenético, lançando os enormes dentes sobre seu marido. Ezequiel errou o primeiro golpe e atingiu a picape de raspão. O cavalo mordeu sua barriga e puxou. Ezequiel apoiou os pés na beirada para não cair, agarrou uma orelha do animal, e desferiu um golpe violento na em sua nuca, fazendo-o desabar em uma cambalhota. Morto.
Quando ele se virou ela percebeu que por sorte sua barriga estava intacta sob a camisa rasgada. O rosto dele porém não denotava alívio.
- HÁ CACHORROS NA CARROÇA! PASSE POR CIMA DESSAS VACAS!
Eram menos de cem metros até as vacas, mas quando ela pisou no acelerador, alguma coisa bateu na lateral direita do carro com um estrondo, fazendo as rodas de trás deslizarem e diminuindo bastante velocidade em que estavam. Num relance Olívia viu as pernas de Arnaldo passando por cima da beirada, e freou, deixando-o caído no asfalto dez metros atrás.
Após ter dado um coice na picape que derrubou Arnaldo, o segundo cavalo já estava sobre ele, prestes a pisoteá-lo no chão. Ezequiel saltou sobre a beirada com o machado levantado e o acertou nos quadris. O animal relinchou e coiceou de volta, arremessando o machado para longe de suas mãos. Arnaldo tinha caiu junto com seu rifle, e com um tiro desesperado estourou a cabeça do bicho.
Olívia esperou que retornassem e acompanhou a aproximação dos animais. As vacas haviam começado a trotar, e tinham pouquíssimo tempo antes da carroça com seus passageiros caninos os alcançarem.
Enquanto eles se jogavam na picape, ela percebeu que Ezequiel segurava a mão esquerda junto ao corpo. Já Arnaldo tinha o cabelo branco de algodão empapado de sangue, que escorria pela testa.
- VAI! VAI! VAI! – Gritaram os dois.
Os pneus cantaram. As vacas perceberam a aproximação, e abaixaram as frontes como touros. Aquelas malditas testas ossudas conseguiriam pará-los? Era muito difícil o carro passar por cima daquilo, mas valeria a pena se algumas morressem.
Humanos e animais se prepararam para o impacto.
A primeira coisa que sentiu foi o estrondo seguido por uma intensa trituração de ossos, conforme o para-choque avançava sobre três das vacas. No instante seguinte seu corpo deslizou do assento e seu rosto foi de encontro ao volante. Desnorteada e com a boca sangrando, ainda teve tempo de pensar em como fora burra de esquecer o cinto de segurança, então notou a carroceria chacoalhando e algo como uma guerra começar na parte de trás.
Ezequiel e Arnaldo rugiam, distribuindo morte para as vacas que os atacavam dos dois lados. Alguém tinha que lidar com a carroça cheia de cães. Estava prestes a abrir a porta quando uma mandíbula selvagem atravessou o vão da janela e se fechou a centímetros de sua bochecha. Ensandecida, a vaca continuou tentando alcança-la, e no centro de seus olhos ela viu duas estrelas azuis, até que uma pesada lâmina rachou o topo de seu crânio, esguichando sangue dentro da cabine e sobre Olívia. As estrelas morreram. O animal revirou os olhos e escorregou com a língua para fora, bloqueando a porta com seu corpo.
Olívia subiu na janela e se jogou na caçamba, caindo de joelhos sobre uma profusão de sangue e munições espalhadas. Tinha poucos segundos. Pegou o rifle que encontrou e percebeu seu ferrolho puxado e a câmera vazia. Era o de Arnaldo. Tremendo enfiou um cartucho nele e engatilhou. E como não havia tempo, apenas levantou e disparou. Ela atingiu o peito do cavalo, que bufou e continuou avançando, desgovernado. Pelo menos ela o tirara dos trilhos.
Livrou-se do rifle e pegou sua foice. Umas cinco ou seis vacas ainda eram rechaçadas enquanto tentavam subir na picape. Ela estava pronta para ceifar alguma coisa quando o cavalo chegou como um trem e bateu em cheio na traseira, quase derrubando todos. Três cães passaram voando por cima deles e caíram após o carro, enquanto um quarto rodopiou baixo e atingiu a parte de trás da cabine, caindo entre os homens.
Gritando, Olívia desenhou um arco vertical com sua foice que pregou o cão na lataria. O animal morreu quando a lâmina foi arrancada de seu torço. Subiu então no teto da picape, onde achou que lutaria melhor contra os cães, e balançou sua longa arma em preparação.
Foi o tempo dos cães restantes se levantarem e atacarem, saltando sobre as vacas mortas e subindo no capô em uma velocidade absurda. Olívia desferiu um golpe lateral que empalou o cachorro mais próximo, mas permitiu aos outros dois saltarem juntos sobre ela. Com o cabo da foice bloqueou uma mordida que arrancaria suas tripas, mas o terceiro cão conseguiu cravar os dentes em sua perna, logo acima do calcanhar, e puxou.
Caiu de costas no teto, sentindo o baque tirar o ar de seus pulmões. Sua foice voou de sua mão com um cão empalado na lâmina e outro abocanhando o cabo. O outro a arrastou para o capô, onde ela se segurou e começou a chuta-lo. Aquela malditas presas se recusavam a soltar sua carne.
Pelo canto do olho viu Ezequiel matar a última vaca do seu lado e se preparar para salvá-la. Porém hesitou com Arnaldo gritando de dor.
- TIRE ELE DE MIM!
Ezequiel jogou um rifle para ela por cima do teto e foi ajudar o velho. Ela teve que soltar o capô e pegar a arma, sendo então arrastada para o chão sobre as vacas mortas. Ela se deixou levar e empurrou o cano da arma pelo canto da boca do cachorro. Disparou com vontade, fundo em sua garganta, espalhando-o pela estrada. Ela ouviu o lamento do último cão, que atacara o velho. Seus ganidos de dor eram entrecortados por rosnados, até que a lâmina do machado encerrou aquilo também.
Estava acabado.
Ela deitou a cabeça em uma perna bovina e fechou os olhos. Nos segundos que se seguiram tentou apenas respirar, mas outras sensações vieram; como o calor de seus ferimentos e o cheiro pungente de sangue no vento.
Ezequiel ajudou-a a se erguer. Ela olhou em volta para quase meia centena de corpos espalhados na estrada e se sentiu horrível. Ela amava os animais. Especialmente as vacas, sempre tão neutras e pacíficas.
Agora estavam todos cansados e machucados. Arnaldo batera a cabeça e fora mordido no braço, Ezequiel quebrara toda a mão esquerda ao levar um coice e ela só conseguia andar mancando, e com muita dor. Era de se esperar que desistissem... mas não existia tal opção. O demônio sabia das intenções deles. Não havia lugar seguro para o grupo.
Com dificuldade arrastaram algumas vacas do meio da pista (os três juntos para cada corpo) e seguiram viagem. Arnaldo ao volante. Todos permaneceram calados com suas dores e pensamentos.
Quinze minutos se passaram. A estrada se tornou mais inclinada e fez uma curva acentuada para a esquerda.
Agora estavam realmente subindo.
O caminho da serra, além de muitas curvas, possuía árvores altas em ambos os lados da pista, tornando difícil de observar os arredores. Precisavam encontrar um lugar onde pudessem ver o horizonte e a floresta claramente.
E esse lugar era a ponte.
Era uma construção pequena; apenas quinze metros de aço e concreto ligando as margens de uma antiga falha no relevo.
Ele estacionou pouco antes da ponte, e ela ficou observando os homens descerem do carro. Ezequiel correu logo para a beirada e começou a olhar em volta. Arnaldo o seguiu sem qualquer pressa.
Olívia desceu com cuidado. A perna esquerda protestou com o esforço, mas do lado de fora não fedia tanto a sangue. Agora estava livre para se incomodar com o cheiro de sangue e suor em seu corpo, e em como sua pele estava grudenta.
Mancou até a grade de proteção e viu o que eles viam. Um vento frio e constante esvoaçava seus cabelos.
Nada.
Estavam olhando para a maior parte da área de influência do demônio; toda a floresta que cercava a cidade e propriedades rurais. Eram quilômetros além da conta, de um verde denso, com colinas, e cercado por montanhas baixas. E das montanhas, nuvens carregadas se deixavam levar pelo vento. A região em breve estaria quase totalmente na sombra... e talvez na chuva.
Ezequiel não tinha desanimado ainda.
- Deve haver alguma coisa...
Arnaldo puxou os próprios cabelos.
- Não tem nada pra ver aqui! Era pra gente estar lá embaixo atrás daquela coisa!
Ezequiel respirou fundo.
— Nós não temos ideia de onde procurar.
— Quem liga?! Ele vai tentar nos pegar mesmo!
O tom da conversa já indicava onde ela iria parar.
— Ou talvez ele prefira ver TODAS AS COBRAS E ONÇAS DAQUI ATRÁS DO NOSSO RABO! — Respirar fundo não tinha funcionado com ele.
Arnaldo rosnava:
— Eu não tenho medo de malditas cobras e onças — dizia, fechando os punhos.
— Velho SUICIDA! — disse Ezequiel.
— É, eu CANSEI! Cansei dessa merda! Eu quero MORRER!
Um leve tremor subitamente percorreu seus ossos, de baixo pra cima. Em seguida, um som como de um trovão abafado ecoou pela serra. A rocha se partiu em algum lugar bem acima deles. E quando contemplaram o alto, tiveram seus olhos iluminados por milhares de rápidas e cintilantes estrelas azuis. Olívia sentiu que estava, de fato, dormindo e sonhando com aquilo. Um sonho azul e cristalino. Algo impossível de se acreditar que está vendo, mas tão lindo que te fazia não pensar nisso. Como um sonho, era tão fascinante que a mente simplesmente se deixava entreter.
As estrelas eram a borrifada de água que uma nascente fizera antes de despejar uma torrente de brilhante água azul montanha abaixo. Encharcando as árvores com luz.
Eles assistiram com grande expectativa a água finalmente alcançar a falha sob a ponte, se transformando em uma volumosa e potente cascata que iluminou a área. As árvores no fundo da falha simplesmente se soltaram do solo e foram levadas pela água, até magicamente se enterrarem dezenas de metros abaixo, delineando o curso. O rio não perdeu velocidade alguma modificando a natureza, e como uma serpente de luz, terminou de descer a serra e seguiu pela floresta.
Arnaldo foi o primeiro a dizer algo:
— MINHA SANTA MÃE! Isso é...
— É um sinal – disse Ezequiel, dando um sorriso amarelo.
— ELE ESTÁ AMALDIÇOANDO TODA A TERRA!
Ver novamente um rio de luz azul fez Olívia reviver a noite em que fora capturada; como fora facilmente enganada e atraída pela ilusão. Não podia acreditar que estava acontecendo tudo de novo.
E não era só isso que a preocupava.
— Você... — ela se aproximou do marido enquanto pensava em como ia dizê-lo.
— Já esperava que ele nos daria um sinal? Num lugar como esse? Como?
Ezequiel a olhou com sinceridade e a contou:
— Eu acho que já estaríamos mortos se ele quisesse... se ele ainda não nos quer mortos, então quer que o encontremos.
Arnaldo riu.
— Há! Então vamos mesmo todos morrer.
— Não sem lutar — respondeu Ezequiel.
— Vamos fazer exatamente o que o que ele quer — disse Olívia. — E não temos escolha.
Eles invariavelmente abaixaram as cabeças e ficaram em silêncio.
- É isso aí, chega de papo – Num instante Arnaldo tinha substituído sua melancolia por resignação. – Vamos acabar logo com isso. Tem uma descida um pouco mais à frente que vai nos tirar da serra. Mas vamos ter que andar uns dois quilômetros. Lá embaixo ela se afasta do rio.
Os três se olharam nos olhos e concordaram.
De volta à picape, Arnaldo os guiou aos seus sombrios destinos.
Cinco minutos depois, encontraram uma placa quebrada indicando a descida mencionada por Arnaldo. Olívia não conhecia tal caminho, e descobriu uma estrada de terra íngreme e esburacada, tão sinuosa quanto o rio. Arnaldo dirigiu apressado, metendo as rodas em todos os buracos que podia. Ninguém reclamou. Nem mesmo Ezequiel ao bater a cabeça na porta. Talvez estivessem sentindo a mesma sensação de medo e excitação que ela.
De vez em quando viam as árvores que margeavam o rio. Iluminadas pela luz da água, pareciam emitir seu próprio brilho azul, que percorria as copas em ondas lentas e pulsantes.
A luz azul do demônio transformava tudo que tocava. Era hipnotizante mesmo à distância.
Como na noite que eu... sumi por sete dias.
Perderam-nas de vista quando a picape mergulhou nas sombras da floresta, no final da descida. A partir dali a estrada os levaria na direção oposta à do rio, então Arnaldo puxou o carro para a esquerda, atropelando alguns arbustos, e dirigiu até onde as árvores permitiam antes de ficarem próximas demais. Dezenas de metros fora da estrada.
Eles logo perceberam que não tinham sido os primeiros a chegarem ali.
A caminhonete da delegacia estava parada a menos de trinta metros deles. Era possível ver o teto e a sirene por trás de um pequeno aclive cheio de arbustos.
- Não é possível! – Disse Olívia. – Gomes está aqui?!
- O que aquele safado está fazendo? – Disse Ezequiel – Vamos precisar ter ainda mais cuidado.
Desceram da picape e, fazendo o mínimo de barulho possível, se apressaram em pegar tudo. Ezequiel não podia mais atirar e acabou se tornando o burro de carga; levava o machado na mão direita e a bolsa da motosserra pendurada nos ombros, com a presilha de seu rifle presa à alça. Arnaldo levava seu próprio rifle e metera as balas restantes no bolso. Olívia carregaria apenas a foice.
Ninguém viu os dois pares de olhos de luzes azuis, brilhando na vegetação com avidez.
— Eu vou ver a caminhonete — disse Arnaldo. Fiquem aqui.
— Com esses cartuchos chacoalhando nos bolsos? — perguntou Olívia — Me empresta seu rifle. Eu vou.
— E se ele estiver lá?! — perguntou Ezequiel.
— É melhor ele tomar cuidado.
Olívia se aproximou por trás do aclive e conseguiu ver a caminhonete inteira. Os vidros estavam levantados, então era provável que estivesse trancada e vazia. Com cuidado ela observou o retrovisor direito procurando o reflexo de Gomes no espelho. Nada, então continuou agachada até ficar embaixo da janela do passageiro.
Levantou com o rifle na frente dos olhos. A boca do cano seria a primeira coisa que a pessoa veria se... houvesse alguém ali.
Logo seu corpo relaxou e seus olhos foram atraídos para o longo objeto deixado sobre o banco.
Levantou a mão e acenou para eles virem. Sorria amplamente.
Antes que chegassem, virou o rifle nas mãos e quebrou a janela com a coronha. Arnaldo se assustou.
— Droga, mulher!
Ezequiel olhava alarmado para a floresta.
— Não precisamos mais ter cuidado – disse ela abrindo a porta por dentro e removendo a espingarda de cano duplo no suporte de teto.
— Como Gomes é burro! — exclamou Arnaldo.
— Foi muito fácil — comentou Ezequiel. — Não acham estranho?
— Acho — disse Olívia —, mas com certeza é melhor do que deixarmos com o delegado. Acha que pode ser uma armadilha?
Ela encontrou uma caixa de munições sob o banco, e após encher os bolsos com as capsulas vermelhas guardou o restante na bolsa da motosserra.
— Bom, o cartucho poderia estourar na sua cara... mas não é nisso que estou pensando.
Arnaldo pegou a espingarda e a dobrou. Havia um cartucho em cada buraco.
— Esse calibre é alto — disse, olhando-os com um princípio de sorriso. — Explode as coisas... Em que está pensando Zeca?
— Eu acho que faz parte do plano dele.
— BAAH! — gritou Arnaldo — Foi você que nos levou até o sinal dele, então não me venha com essa merda. Já estou com merda até o pescoço. Vamos embora. Pode levar meu rifle Olívia?
— Claro — respondeu, e olhando para Ezequiel disse: — Ele está certo. É tarde demais pra ficar pensando que é tudo plano dele. E só estamos aqui por sua causa.
— Tá, tá. Já entendi. Só estou dizendo.
Por um instante achou que iria ficar desconfiada dele, então começou a andar para não pensar no assunto. Tinha que afastar esse pensamento para não começar a enlouquecer.
Eles andaram em fila por uma floresta cada vez mais escura e fria. As nuvens cinzas que tinham visto enquanto desciam a serra finalmente os cobriram com suas densas sombras, e eles se tornaram habitantes da penumbra. Aquele estado transitório da luminosidade onde as cores desbotavam e morriam.
Não se passaram dez minutos até a dor em sua perna ocupar todos os seus pensamentos. E não se passariam mais dez até ela achar a dor insuportável. Ela descia para o calcanhar, transformando-o em uma engrenagem enferrujada. Sabia que os outros não estavam melhores. Ela se deu conta de que Arnaldo gemia a cada trinta segundos. Por outro lado, Ezequiel não emitia som algum. Olívia estivera observando sua mão inchar e mudar de cor naquela tarde, e se não estava doendo horrores, ou ele fingia muito bem, ou ela estava dormente.
Relâmpagos cortaram as nuvens, imprimindo em sua retina algumas fotografias brancas das costas de Arnaldo e da floresta à frente. Naqueles flashes de luzes, as sombras das folhas das árvores pintaram um mosaico preto e branco no chão, e para ela as sombras formavam um caótico tabuleiro de xadrez. Porém o instante passou, e a escuridão lhe pareceu maior que antes.
Arnaldo se virou, pretendendo falar alguma coisa, mas suas palavras desapareceram quando os trovões rasgaram o ar ao meio.
— O rio está lá! — repetiu, e ela viu a luz azul transparecer em alguns pontos distantes.
O rio.
Nesse momento Ezequiel a empurrou, obrigando todos a seguir caminho.
— Vamos! Vamos! Vamos! Tem alguma coisa lá atrás! Parece longe, mas... é melhor a gente correr! É melhor eu estar errado sobre que animal faz isso!
Olívia e Arnaldo sentiram o medo em sua voz, mas a curiosidade travou suas pernas até que ouvissem o som.
Eram lamentos, muitos, como rugidos de tristeza. Eles choravam para a floresta inteira. Não soavam tão ameaçadores, mas não havia como se enganar sobre que boca fazia aquele som. Uma criatura que já encontrou muitos homens andando sozinhos, e muitos deles se ajoelharam e clamaram por Deus, enquanto suas bexigas se esvaziavam, pouco antes de serem feitos em pedaços.
 Olívia estremeceu. A sensação de urgência tomou cada nervo de seu corpo. Obrigando-a a transformar seu desespero em movimento.                                                          
 Algo semelhante ocorreu com os outros. Arnaldo gritou alguma coisa sobre ser mastigado, e eles correram com tudo que tinham. Miravam as luzes azul-elétrico, difusas pelas árvores
Tudo ao redor e atrás deles estava muito escuro, como se fosse quase noite. Aquela luz à frente parecia ser a única esperança.
De repente os rugidos ficaram mais altos e mais rápidos. Soando menos como um lamento e mais como uma sentença de morte. Era fácil imaginar aqueles felinos gigantes alcançando-os num instante com sua potência assassina, e dilacerando-os no frenesi sanguinário que o demônio causava aos animais.
Começou a chuviscar. Não que tenha dado muita atenção a isso. Sua perna gritava. Seu coração batia como um tambor. Seus pulmões berravam... E tudo que ela ouvia era o triste ódio das onças.
— ESPEREM! — gritou Ezequiel, esbaforido. Ela sabia que a motosserra não era nada leve.
— Por que estamos correndo?! Como o rio vai nos salvar?!
Arnaldo gritou de volta, sem parar de correr:
— São muitas, Zeca! Nossa única chance é conseguir atravessar o rio!
— Esses gatos não têm medo de água, porra!
Não pararam de correr.
Mais trovões racharam o céu, e a água acumulada despencou de uma vez sobre eles. A chuva pesada inundou a floresta com sua cacofonia de infinitas gotas batendo em infinitas folhas.
Ela se deu conta de que não ouvia mais as onças. Tão rápido quanto começara, acabou. Como um sonho.
Faltavam algumas centenas de metros até o rio e as árvores transformadas que o margeavam. E suas luzes eram como um incêndio gelado cortando a floresta. Queimando até o céu como incrível fogo azul. E ao invés da fumaça preta e tóxica, viam uma tênue névoa azulada se espalhando entre as árvores.
Daqui em diante tudo vai ser diferente. Pensou.
Eles saíram da aparente escuridão e avançaram desembestados para dentro da atmosfera cada vez mais azul. Estavam nitidamente exaustos. Ezequiel tinha os olhos injetados e o rosto brilhando de suor. Arnaldo gemia a cada três metros que percorriam. Para Olívia parecia que sempre havia uma protuberância de raiz disposta a torcer seu tornozelo enfraquecido.
Suas roupas lhe aderiram a pele e ela percebeu que em minutos começaria a tremer de frio; assim que o sangue esfriasse. A chuva também tinha feito as onças silenciarem.
Tenho que parar de pensar assim. As onças pararam porque ele quis. Estava apenas nos apressando. Nos obrigando a correr para o rio.
O rio dele.
Estavam quase lá.
Agora podiam ver que o rio se desenrolara pela floresta como um tapete de luz líquida, com três ou quatro metros de largura, e sabe Deus quanto de profundidade. Parecia deslocado, como se não pertencesse àquele lugar. E essa sensação Olívia atribuiu ao fato de não haver qualquer desnível nas margens. Isso confundia a visão.
A superfície radiante e tremeluzente da água, sempre no mesmo nível do solo, era como um espelho entre dois mundos, e se ela o atravessasse, supôs, entraria no mundo feito de luz azul onde todos os rios eram como aquele.
Olívia se sentiu tentada a olhar seu reflexo na água. Imaginava se poderia ver a si mesma transformada em luz.
Um rosnar grave e profundo tirou-a de seus devaneios, e os três se viraram para o que pareciam ser duas pequenas estrelas azuis flutuando atrás das árvores, a menos de um metro do chão. Podiam enxergar muito melhor ali, e apesar de terem certeza que naqueles olhos de luz, a carnificina brilhava, não podiam ver a boca que rosnava, tampouco o corpo que retesava os músculos por antecipação.
Dois pares de estrelas surgiram a poucos metros de cada lado do primeiro. Seus rosnados enchendo os ouvidos.
As onças se adiantaram. Seus olhos de estrelas deixaram rastros de luz azul pairando no ar.
Ofegantes, andaram de costas, pisando com cuidado. Sabendo instintivamente que elas atacariam juntas assim que corressem ou dessem um tiro. Faltavam menos de vinte metros até rio.
E o que diabos iriam fazer? Nadar na luz até o outro lado?
 Enquanto recuavam, mais pares de estrelas saltaram da inexistência. Uma sucessão interminável de feras abria os olhos por toda a parte.
Como as luzinhas que me atraíram da primeira vez.
— Vão nos cercar se não chegarmos no rio logo! — Disse Arnaldo. Mantinha a poderosa espingarda abaixada enquanto andava, pronta para ser usada.
— E depois?Perguntou Olívia.
Estavam passando pelas árvores mais próximas da água. O grave rosnar ficava cada vez mais alto.
Impaciente.
— Esqueçam os rifles, a munição molhou. Diabos! Largue isso Olívia!
Eles chegaram à margem de costas coladas. Ela soltou as armas e a espingarda foi empurrada em suas mãos.
Mais balas. Pensou. Seu olhar disparando freneticamente entre os três pares de luzes flutuantes mais próximos. Os bolsos da calça estavam cheios de cartuchos para aquela arma.
Mas não há tempo! Não há como! São dezenas!
Arnaldo havia tirado a motosserra da bolsa e se preparava para puxar a corda de ignição. Ezequiel defendia seu lado com as pernas bem abertas e o machado curto em riste. Acima do rio a chuva brilhava multiplicando a misteriosa cor do demônio.
Três feras avançaram, de repente cada par de estrelas ganhou uma cabeça iluminada, e as cabeças ganharam corpos logo em seguida. Não tinham qualquer substância sob os contornos luminosos que desenhavam sua pelagem cheia de manchas, e deixavam um rastro embaçado no ar, fantasmagórico.
Vou morrer.
As onças mergulharam pelo ar pelo que pareceu uma eternidade. O tempo ficou pastoso, se arrastando como os rastros de luz. Ela levantou a espingarda com a mesma lentidão, e quando a onça abriu as garras, prestes a abraça-la e rasgar seu pescoço, os olhos dela se fecharam e a espingarda detonou a munição.
Os três gritaram e lutaram.
Quando tornou a ver, ouviu sua voz estrangulada, e seus últimos gritos escaparam antes de serem sufocados pelo sangue que jorrava ruidosamente. Levou a mão ao pescoço.
Intacto.
À sua frente, no fim de um arco de luz que se esvaía no ar, uma das onças arrancava o rosto de Ezequiel a dentadas. O som era horrível. Porém seu marido tinha se tornado um ser de luz. Era outra surreal aparição luminosa.
Como espíritos.
— ... ?
Ela se virou, alheia as outras onças que se aproximavam, e então entendeu.
Olhava para a Olívia que recebeu um abraço e teve a garganta arrancada. Sua gêmea de luz, ainda tremendo sob a fera. E ao lado dela, o verdadeiro Ezequiel, olhando petrificado sua própria versão de luz ser devorada.
— Saia de cima! — gritava Arnaldo em pé, atravessando a onça com a moto-lâmina e sendo ignorado.
Presas de luz e vento entraram em sua coxa logo acima do joelho — ela ouviu o tecido da calça e a carne cedendo sem ceder de verdade — e outra desesperada Olívia de luz foi puxada de dentro dela, gritando a plenos pulmões o nome do marido enquanto era arrastada. Foi quando uma segunda onça mordeu o lado da barriga, abrindo-o. As onças trocaram apenas alguns rosnados e começaram a disputar os órgãos dela. Sua cópia continuou respirando. Olhava para os lados com a face da morte. A cabeça e os braços não sabiam o que fazer e se agitavam de forma incoerente.
As onças fantasmas fluíam sobre eles incessantemente, criando e destruindo cada vez mais versões de luz. As bestas corriam e matavam por toda a parte, chegando a disputar as vítimas em violentos cabos de guerra onde os cabos sempre se partiam. Em instantes todo o espaço na margem estaria preenchido com os rastros luminosos do massacre.
A cabeça de Ezequiel despontou de trás de uma onda de luz e Olívia o chamou o mais alto que pôde, se vendo completamente abafada pelos gritos de excruciante dor que as muitas outras Olívias sofriam. Aqueles gritos eram bem mais altos que todo o resto, e convergiam para uma espiral em sua cabeça, deixando-a tonta.
Múltiplas faixas se cruzavam e se sobrepunham de maneira enlouquecedora. Através delas os corpos de luz brilhavam mais forte, gladiando-se. Os corpos de verdade como o dela eram engolidos e desapareciam.
Um redemoinho de dor indescritível crescia e tomava forma em sua imaginação. Centrifugando cada vez mais sofrimento em suas insanas correntezas. Sua cabeça girava quase no mesmo ritmo. Fechou os olhos, tentando fugir, mas continuou vendo e ouvindo as Olívias sendo dilaceradas e, ainda gritando, boiarem aos pedaços para dentro da espiral em sua cabeça.
E lá no centro...
Sentiu as pernas enfraquecendo. Antes que caísse começou a correr sem direção. Não saberia dizer por quanto tempo procurou Ezequiel e Arnaldo, mas sabia que seu tempo estava acabando.
E então. Sem aviso. O redemoinho feito com todo o sofrimento das Olívias de luz piscou numa visão, tomando toda a realidade. Esse instante durou uma eternidade durante a qual ela não existiu; era uma partícula consciente pairando no vazio. À sua frente, sugando eternamente a linda e maligna energia azul, um buraco negro do tamanho do universo emitindo ao mesmo tempo o coro de gritos e um repugnante som de sucção.
E lá no centro, o escoadouro. A essência pura da dor. O horror como indescritível singularidade.
O inferno.
O momento se foi num piscar de olhos. O vórtice sumiu. Ao redor dela a matança de fantasmas progredia.
Ela sentia a loucura da visão se alastrando por dentro dela. Infectando-a com um medo inconcebível. Tinha medo de ver o buraco novamente; de ser engolida e se tornar una com o sofrimento eterno.
A terrível ironia de sentir isso foi que os gritos dentro de sua cabeça – mais altos que todo o caos ao redor – voltaram a se intensificar, em ressonância com aquela coisa horrível que a desejava tanto.
Ela agarrou sua cabeça com as duas mãos e correu a esmo gritando. A sensação aumentou de uma vez e a transportou de novo para a porta do inferno, mas muito mais perto e se aproximando.
Quando aquele tempo sem fim acabou, Olívia pisava em falso. Estava sobre o rio e não havia mais volta. Enquanto caía, O ralo apareceu na superfície da água e a engoliu.

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